sábado, 28 de julho de 2012

Sobre Composição, gosto e outras coisas - Parte II

Continuando as reflexões sobre Boulez e Pound ...

Boulez, em seu texto "Le goût e la fonction" realiza interessantes considerações sobre o gosto musical e a função musical partindo das premissas de Rousseau sobre o Gosto.

A partir de várias colocações de Rousseau sobre o que seria o gosto, como ele está relacionado com a "boa educação", se há ou não um "bom gosto" generalizado, ou não, ressalto uma passagem bem interessante do texto de Boulez:

"Não é realmente tão estranho, já que é o que acontece de fato em todo concerto (...) O que é o aplauso que não um comunidade ratificando o seu próprio gosto? Todo amante de Tchaikovsky em um concerto de Tchaikovsky esta celebrando o culto a sí próprio. Ele reconhece seu próprio gosto naquele compositor, congratula a si mesmo nele, e quando ele aplaude esta aplaudindo a si próprio." (Boulez, P. Orientations. Harvard University Press, 1989. p. 48).

Vejamos o que Pound fala sobre literatura:

"Os partidários de ideias particulares podem dar mais valor a escritores que concordem com eles do que a escritores que não concordem; podem dar - e usualmente dão - mais valor a maus escritores do seu partido ou religião do que a bons escritores de outro partido ou igreja" (Pound. E. ABC da literatura. Cultrix, 1977. p. 36)

Os dois trechos são ótimos tapas-na-cara de comodismos perceptivos! Ambos fazem-nos pensar em nossas atitudes perante aquilo que fruímos e demonstram o quanto o julgamento pelo gosto pode ser perigoso. Até poderíamos postular que quando aplaudimos ingenuamente, celebrando um certo prazer no reconhecível, confirmamos que estamos dentro de nossa zona de conforto, sem termos sido confrontados pelo que se frui. Logicamente, Boulez nem está considerando a música de consumo, o que nos levaria à um panorama totalmente funesto. Boulez apresenta muito mais a discussão em relação à uma aceitação incondicional em relação à música Romântica ou Clássica (tonal) em relação à música de seu tempo.

Pound sim continua a discussão em direção à deteriorização da linguagem.

"Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai." ou ainda:

"O homem lúcido não pode permanecer quieto e resignado enquanto o seu país deixa que a literatura decaia e que os bons escritores sejam desprezados, da mesma forma que um bom médico não poderia assistir, quieta e resignadamente, a que uma criança ignorante contraísse tuberculose pensando que estivesse simplesmente chupando bala."

e fechando ainda com Pound:

"O primeiro pântano da inércia pode ser devido à mera ignorância da extensão do assunto ou ao simples propósito de não se afastar de uma área de semi-ignorância. A maior barreira é erguida, provavelmente, por professores que sabem um pouco mais que o público, que querem explorar sua fração de conhecimento e que são totalmente avessos a fazer o mínimo esforço para aprender alguma coisa mais." 

Portanto, salvemo-nos da ignorância tanto musical quanto literária para não assistirmos ainda mais a decadência de nossa existência, além do pântano que já estamos!

Sobre Composição, gosto e outras coisas - Parte I

Nas últimas semanas tenho lido, entre outros, dois livros muito interessantes e que, com mania de compositor de sempre por coisa com coisa - com/por - , vi que seria interessante exercitar o relacionamento entre algumas ideias desses dois livros que me pareceram muito próximas. Um deles é o Orientations de Pierre Boulez, que para quem não conhece é uma coletânea de publicações de seus artigos que não foram contemplados nas outras coletâneas como Apontamentos de Aprendiz, Música Hoje, entre outros. O outro é o labiríntico ABC da Literatura de Ezra Pound, que me entristece profundamente em perceber que na atual sociedade este livro distanciasse fortemente de um ABC!!

Bem, acredito que não haverá muita lógica formal neste texto que apresento, mas gostaria de divulgar as ideias geniais desses dois grandes autores, se é que alguém lê este blog (hehe). Grande parte das reflexões são resultado de discussões que tenho que fazer como professor de composição, se é que composição é algo que se ensina.

Começando por Boulez.

No atual mundo da composição tenho visto emergirem inúmeras propostas composicionais um pouco "estranhas" e posso até ser considerado conservador ao apresentar o que se segue.

Com a tão famosa "democratização" da tecnologia temos visto a atividade composicional ser simplificada ou fetishizada, principalmente aquela que usa novas tecnologias, de diversas formas. Não que o desenvolvimento de propostas cada vez mais radicais não devam ser exploradas, mas alguns alertas podem ser apresentados para avaliarmos a situação em que nos encontramos e buscarmos um equilíbrio saudável para nossa prática.

Temos visto por ai uma montanha de softwares que permitem "compor" a partir de trechos musicais prontos e um monte de piro fagias eletro-eletrônicas que são utilizadas como "ferramentas" ou "propostas" composicionais. Grande parte da música eletroacústica ou live-electronics que tem aparecido ultimamente, me parece apresentar um "pequeno" problema de conceito.

A música eletroacústica  parece ter virado um fim e não um meio. Cada vez mais temos compositores eletrocústicos, compositores de live-electronics e não mais compositores que ao se expressar em seu universo, em seu tempo, em sua sociedade, ou quiça à seus pares, compõem musica eletroacústica ao invés de compor. O que tento dizer é que acredito que se deve compor independente do meio em que se expressa e devemos ser capazes de deixar que a escritura que se elabora ocorra no meio que lhe é mais própria, caso contrário teremos um efeito limitador que acho não poder existir na real composição musical.

Não deve-se ser um compositor de música eletroacústica, ou um compositor de live-electronics, mas sim um compositor que se se explora uma forma de expressão que precisará de uma única voz para se materializar isso deve ocorrer naturalmente no processo de criação.

Tenho visto cada vez mais o contrário disso. Cada vez mais compositores decidem: Vou compor um live-electronics, vou compor um "tape solo" (me permitam o termo velho), ou invés de: estou compondo algo e acho que esse algo se materializará como uma música de câmara, se materializará como um "tape solo", ou se materializará como um live-electronics.

Nesse sentido, Boulez apresenta algumas considerações que nos fazem pensar. Em seu texto "L'esthétique e les fétiches" apresenta algumas ideias que bagunçam esse panorâma e que reproduzirei, sem muitas delongas, pois os próprios postulados são auto explicativos:

1 - Muita ciência e pouca sensibilidade
2 - Desejo de ser original a todo custo, levando à artificialidade e ao exagero
3 - Pouco contato com o público devido ao exagero de individualismo
4 - Recusa de aceitar a história e a perspectiva histórica e
5 - Falha em respeitar a ordem natural

Para obter uma visão decente de cada uma dessas ideias, nada melhor que o próprio texto, mas vale a pena ressaltar algumas.

O ocidente tem uma certa mania de evolucionismo desenvolvimentista que sempre pretende considerar o que veio antes como mais velho, desatualizado e caduco o que tem acarretado no panorama que tentei demonstrar acima. Vou reproduzir uma das passagens do texto de Boulez para reflexão:

"Uma melodia Gregoriana é inquestionavelmente mais complexa que uma melodia tonal (...) Nos não podemos falar em 'progresso' da monodia para a polifonia, apenas uma mudança de interesse que enriquece um elemento e empobrece outro, ganho em uma área compensando a perda em outra." (Boulez, P. Orientations. Harvard University Press, 1986. p. 36).

Logicamente, o próprio Boulez vai estender a discussão apontando que cada época tem as suas necessidades e formas de responder à suas perguntas, porém tal excerto nos faz pensar ou ao menos avaliar até que ponto não estamos incorrendo no fetiche de ser original a todo custo, geralmente "jogando a criança fora junto com a água do banho".

Outro ponto a considerar é o primeiro apontado por Boulez: ciência demais. Boulez, em momento algum invalida a ciência e muito menos eu, mas vale ressaltar que é muito estranho o fato de cada vez mais vermos tentativas de justificar a arte pela ciência. Ainda mais no Brasil em que a arte é sempre a prima pobre na academia e na sociedade. Uma necessidade de cientificismo para que a arte não morra de fome é muito comum, porém a arte não deve ter que ser "justificada" nem pela ciência, nem por coisa alguma. A ciência é campo sim de referencia, de exploração e até de inspiração, principalmente para que o compositor entenda melhor o mundo em que vive e elimine anacronismos ingênuos, porém ciência é ciência e arte é arte (com perdão à obviedade). 

Enfim, qual é o real ofício do compositor atualmente? É um pecado capital escrever com alturas definidas? O rito do concerto é tão velho assim? A música feita para o deleite intelectual, reservado e concentrado é tão desnecessária atualmente? Tudo tem que ser performático, interativo e rápido para o nível de atenção efêmera da contemporaneidade?

É evidente que não proponho uma regressão ingênua a modelos estabelecidos ou estereotipados como muito se vê tanto na música popular quanto na música erudita (ressaltando que os termos são péssimos), mas tendo cada vez mais a considerar que composição é um processo de diálogo com a história e para haver diálogo devemos ser menos niilistas com o que nos antecede (com perdão à redundância), ao mesmo tempo que devemos ser mais rigorosos com o que produzimos. Nesse sentido, adoro a definição de Pound sobre literatura:

"Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível" (Pound, E. ABC da literatura, Cultrix, 1977. p. 32).

Porque não pensar na música da mesma forma. Logicamente teríamos que considerar o que é significado em música, porém se qualquer ato perceptivo é na verdade um processo significante, não há tanto erro em transportarmos a definição de Pound para a música.

Redes Harmônicas de Pousseur - implementação para uso em Live electronics

Depois de um bom tempo sem publicar, já que estou na "caverna" escrevendo o doutorado, resolvi divulgar alguns resultados práticos da pesquisa.

Para sermos breves: as redes harmônicas são uma forma de representar um determinado "espaço harmônico" a partir de um espaço tridimensional onde se dispõem eixos intervalares musicais. Tal espaço criado demonstra como se dão relações de proximidade e distanciamento entre regiões acústicas (expresso pelas notas) de uma forma muito similar aos quadros de regiões de Schoenberg. Pousseur elabora a hipótese das redes após inúmeras especulações sobre as polarizações entre as notas musicais no intuito de encontrar uma meta-gramática que pudesse fazer rimar Monteverdi com Webern, ou seja, um pólo fortemente tonal à um polo fortemente multipolar incluindo nesse percurso todas as transformações do "espaço harmônico" ocorridas entre esses dois extremos. Enfim, para uma visão menos refratária sobre o assunto, basta consultar seu "Apoteóse de Rameau - ensaio sobre a questão harmônica"
ou "Apoteóse de Schoenberg" de Flo Menezes.

O que quero partilhar aqui é a implementação computacional que fizemos da rede tanto para SuperCollider, quanto par PureData, com a ajuda mais que especial do colega computólogo Flávio Luis Schiavoni.

Para acessar o código da aplicação tanto para SuperCollider quanto para PD vá a página do projeto no SourceForge.

A documentação de uso também está disponível no site. Espero que a implementação seja útil para aqueles que se interessam pelas redes harmônicas de Pousseur e sugestões são bem vindas!